A Faca

Como diz um amigo, a tecnologia é como uma faca: na mão do açougueiro é uma coisa, na do bandido é outra.

Há tempos atrás, passei por uma situação delicada por conta da tecnologia mal usada.

Cheguei para uma gravação com um arranjador que não conhecia. Quando fizemos os acertos para o trabalho, uma de suas primeiras perguntas foi: "Você lê música? Quero dizer, você lê notas? Porque eu escrevo as linhas, então preciso de um baixista que leia em clave de Fá", etc.

Tudo certo, tudo combinado, já sabia o que esperar. Ou pensava que sabia...

Bom, quando olhei a primeira partitura, toda impressa no computador, comecei a perceber algumas frases estranhas para o contrabaixo. A mecânica e idéia melódica não tinham sido pensadas para o meu instrumento, e uma pergunta começou a desvendar o mistério:

"Como é que você escreve para o baixo?", pergunto.

"Então, sequencio o baixo no Sonar e aí mando imprimir".

Explicado. O arranjador toca a linha do baixo no teclado, sem se importar com a mecânica, tessitura, e joga a "bomba" na mão do músico, nesse caso eu.

Para aqueles mais novos na música, o que acontece é o seguinte: cada instrumento tem um jeito de tocar próprio, ou seja, o que é fácil para um baixista, pode ser complicado para um saxofonista, por causa das diferenças de digitação, articulação, etc. Por exemplo, em um piano você faz um salto de 3 oitavas num piscar de olhos, o que não vai acontecer no contrabaixo.

Bom, voltando à gravação: tentei manter aquela situação o máximo que pude, tocando as frases feitos no teclado. Mas comecei a ficar muito incomodado, porque comecei a perceber que o arranjador estava se achando o máximo, escrevendo frases difíceis para eu tocar, e achando que a minha leitura era precária.

Aí chamei o cara de lado, e falei: "Amigo, deixa te falar uma coisa. A maioria das coisas que estão escritas para o contrabaixo não tem a linguagem do instrumento, porque você não escreveu para um baixista. Simplesmente tocou no teclado e imprimiu. Veja essa frase", e toquei um arpeggio que me obrigou a fazer um two hands. "Essa frase, mesmo que realizada, está soando bem para você?"

"Não, realmente não", foi sua resposta.

"Então a gente tem 3 opções: a primeira é você me deixar fazer as frases da maneira que um baixista iria fazer. A segunda é você arrumar um synth de baixo bem bonito no teclado, e tocar as suas frases. E a terceira, acho que a mais improdutiva, seria eu ficar tentando tocar o que você escreveu."

"Entendi. Pode usar as suas frases." A humildade em pessoa, com direito a pedido de desculpas no fim do trabalho.

E daí pra frente, tudo andou direitinho...

Abraço,

Claudio

Comentários

Anônimo disse…
Impressionante é a cara de pau: "você sabe ler clave de fá?"
Deveria antes se preocupar se ele próprio sabe escrever, isso sim.
É de se perguntar quem convenceu ele de que é arranjador. O pior é que essas pessoas vão ganhando espaço, se criando no meio...
Tem mais: corre o risco de depois ele dizer que o baixo foi escrito por ele.
Lamentável.
Claudio Rocha disse…
O pior é que está cheio de "bico" no mercado.
Um amigo transmitiu uma gravação pelo TwitCam, e num determinado momento mostrou a partitura que o arranjador escreveu...
O cara sequer colocou acordes, só as notas: F / C / D / Ab / etc
O mais incrível é que de repente o artista faz sucesso, e esse "arranjador" vira o cara do momento...
Não tem fim. Se chegar no fundo do poço vai ser uma coisa boa, porque aí não dá pra ficar pior. Até lá...

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